terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O espelho * MACHADO DE ASSIS/RJ

O ESPELHO
MACHADO DE ASSIS/RJ


Esboço de uma nova teoria da alma humana

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e

eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:

- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.

- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

- Duas?

- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

- Não?

- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...

- Perdão; essa senhora quem é?

- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia,

fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João

VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente

muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

- Espelho grande?

- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

- Não.

- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.

Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou

comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte.

Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

- Matá-lo?

- Antes assim fosse.

- Coisa pior?

- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes.

Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais

cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac,

tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei- me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?

- Sim, parece que tinha um pouco de medo.

- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne...

Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

- Mas não comia?

- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...

- Na verdade, era de enlouquecer.

- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação.

Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me.

Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...

- Diga.

- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

- Mas, diga, diga.

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas,

despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.

FIM

quarta-feira, 20 de abril de 2022

SINAL VERMELHO * Antonio Francisco Pereira / MG

 SINAL VERMELHO



     Para que serve o sinal de trânsito? À primeira vista esta é uma pergunta idiota, não é mesmo? Mas eu tenho observado que ele serve para mil e uma utilidades (outros diriam futilidades). Refiro-me especificamente ao sinal vermelho: PARE.

     Todos param, a não ser um ou outro apressadinho irresponsável. Parados, muitos aproveitam aqueles segundos preciosos para realizar alguma tarefa secundária, quase sempre no celular, que hoje já é parte integrante do corpo humano: cabeça, tronco, membros e...o celular. Fazem ligação, pesquisa, mandam mensagens, tudo o que eu (até pela idade) não consigo fazer quando tenho o volante nas mãos, mas muitos conseguem. 

     Mas não é só isso. Aquele tempinho serve também para comer uma fruta, acender um cigarro, pentear o cabelo, ajustar o banco e – melhor ainda - para os namorados trocarem um beijo apaixonado (ah, o amor combina com qualquer sinal: vermelho, amarelo, verde...).

     E quando eu achava que a lista já estava completa, pelas observações anteriores, deparei ontem, na Avenida Contorno, com outra utilidade do sinal: a maquiagem. E não foi um simples retoque no cabelo ou nas sobrancelhas, não. Como eu estava imediatamente atrás do seu carro, deu para ver que a operação da motorista foi complexa e com várias fases. Base, corretivo, pincel, delineador, sombra, pó compacto, batom, blush... Enfim, todo o arsenal de um salão de beleza. Por isso, ela precisou de uns quatro ou cinco sinais vermelhos para concluir o processo de embelezamento. Deve ter valido a pena, pelo sorriso de satisfação que o indiscreto espelho retrovisor me mostrou.

     Só que, logo após, a chuva recomeçou. E no sinal vermelho seguinte, o galho de uma árvore desabou sobre o capô e se prendeu no limpador do para-brisa do carro da moça, impedindo que ele funcionasse.

     Reaberto o sinal, sem enxergar direito, ela não se moveu e, então, começou o buzinaço, pois o brasileiro sabe usar mais a buzina do que a seta. Ela vai ter de descer, pensei, e, aí, adeus maquiagem. Vai por água abaixo, literalmente. 

     Então, num impulso, quando ela já ia abrindo a porta do carro, eu saí do meu Fiat, agitando os braços e, com certa dificuldade, desembaracei o limpador. Estava com roupa leve, de caminhada, mas, ainda que estivesse de terno e gravata, eu o faria. Não seria justo aquela musa perder o encontro amoroso, a entrevista de emprego ou festa de aniversário, seja lá o que for, por causa de um galho intruso que resolveu cair na hora errada, no veículo errado.

     E ela ficou tão agradecida que me atirou, com a palma da mão, um beijo delicioso. Deu até para sentir o gostinho do batom que ela havia acabado de passar nos lábios.

     Eu fiquei todo molhado, é verdade, mas com a sensação de que havia praticado a boa ação do dia. Senti-me até no direito de avançar um sinal amarelo para chegar em casa mais rápido e secar o corpo.

     Agora só faltava o sinal verde, à noite, para tomar um bom vinho, em boa companhia.

     E foi assim que eu fechei o domingo: no vermelho, no amarelo e no verde.

     E confesso: valeu a pena. 


     Antônio Francisco Pereira / MG

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Indígenas, a cidade e a via láctea * Eni Carajá Filho / MG

Indígenas, a cidade e a via láctea

Eni Carajá Filho / Jokãntyhy - MG


A Via Láctea é uma galáxia espiral, da qual o Sistema Solar faz parte. Vista

da Terra, aparece como uma faixa brilhante e difusa que circunda toda a

esfera celeste, recortada por nuvens moleculares que lhe conferem um

intrincado aspecto irregular e recortado. Wikipédia

Constelações: Orion, Sagittarius, Scorpius, Canis Major, Ara, Carina, Auriga

Era apenas uma garota com sonhos de lugares inimagináveis, queria ela explorar as belezas da via láctea, lugar que ela ouviu falar durante uma roda de prosas na fogueira em sua aldeia de origem, entre seus parentes sentados num tronco de árvore e na fogueira sentia o cheiro prazeroso da fumaça vinda de madeiras cheirosas com aquele tom aromático da casca e das folhas da canela exala como se defumasse plenamente aquele ambiente.

Percebia com muita preocupação que suas tias, tios, e primas e primos e outros parentes que eram muitos estavam só diminuindo em sua volta, ao redor, e parecia que eles não mais existiam.

Indagava para si mesmo qual era o significado de tudo isso, inocente ainda pensava que eles também já a deixara e fora curtirem a Via Láctea e não levou ela por ser muito novinha ainda, deixaram de convidar, estava até conformada que seu dia de conhecer essa maravilha que a sua mente registrara, chegaria.

Um dia essa menina, que se chama Marayny Carajá ficou espantada, pois havia saído de sua aldeia com seu pai para buscar querosene para as lamparinas e lampiões e chegando na cidade via pela primeira vez uma televisão, sim aquelas Telefunken de válvulas eletrônicas, tubo e encaixadas na madeira envernizada.

Mas seu espanto não foi ver a televisão em cima de uma Mesa a altura da cintura e com rodinhas, mas estava ligada e justamente passava uma reportagem sobre vivência de indígenas naquela cidade e coincidentemente quem estava sendo entrevistada era sua parente, a prima Anauerê Carajá, que fora uma das que sumiram na aldeia e era imaginado que a mesma havia ido conhecer a Via Láctea, ela havia sido levada por uma família, quando tiveram na Aldeia Santa Izabel do Morro, no município de Lagoa da Confusão no Estado de Tocantins.

Saindo da Aldeia aos 12 anos Anauerê, passou a ser empregada doméstica na casa de uma Família Torí, o que é uma prática de trabalho escravo infantil e justamente numa metrópole como São Paulo, no Bairro do Tatuapé, que é um nome de origem indígena.

Anauerê na entrevista rápida, prendeu a atenção de Marayny que parecia surpresa e chocada e seu pai Atoweá não saia como comportava em relação aquilo e ouvindo Anauerê falar que estava participando de lutas indígenas na cidade ficou mais conformado devido a já ter recebido os sinais de seus ancestrais que apontaram uma vastidão de lugares onde o indígena poderia chegar desde que buscasse agir no sentido da paz e da perseverança.

Passados muitos anos e a garota agora moça lembrara que iam umas pessoas brancas com máquinas fotográficas pesadas, pediam para elas sorrirem e escolhiam para levar para a Via Láctea apenas as que tivessem cabelos com franjas,dentes curtinhos, alvos e cerradinhos e lhes prometiam a si a a seus parentes um mundo novo, assim ela começava a pensar e interpretar que o ocorrido não fora apenas a Anauerê.

Na entrevista rápida Anauerê falava que fora abandonada pela família branca que a havia trazido para São Paulo, justamente pela recusa em fazer tanto trabalho, cozinhar, lavar, passar, cuidar do Jardim que era imenso, e ainda dormir num banheiro desativado, assim foi viver em situação de rua, mas conseguiu por sua própria forma de ser, o respeito aos demais parentes da rua que sabia de sua origem indígena, pois as vezes esses vêm de aldeias sob promessa de uma terra diferente e chega aqui depara com a realidade da Crackolândia e de espaços de convivência nas ruas da praça da Sé.

Anauerê revelava em sua entrevista que a condição dela estar em São Paulo e daquela forma social não a retira a condição de indígena, e que esses em várias situações aparecem cada dia mais a procura de atendimento de meia e de alta complexidade, ou até para estudos uma vez que vários territórios indígenas sequer possuem unidades de saúde e até mesmo escolas em seus diferentes níveis de ensino.

Percebia-se a intenção de Anauerê em denunciar que as visitas e explorações dos Torí em terras indígenas levam uma série de conseqüências a exemplo de epidemias, doenças em função da susceptibilidade dos indígenas ao contato com esses vírus.

Lembrava essa indígena que o retratista que foi lá tirar fotos delas e a trouxe para a cidade era uma pessoa que vivia adoentado, e pensava será que ele não deixou para traz

tanto problema? Denunciava na entrevista que o mesmo não honrou a palavra junto ao seus pais e sequer devolveu ela a sua comunidade.

Marayny Carajá tão logo encerrou a entrevista pediu ao seu pai para que levasse a de volta pois estava super preocupada com a prima Anauerê e que aquela história não poderia terminar ali.

Levaram os cinco litros de querosene em São Felix do Araguaia, daquele secos e molhados. para a aldeia e retornaram na Rural Willis de um amigo, e chegando na Ilha do Bananal e sem descansar Marayny foi direto para a Oca Grande e pediu às crianças para chamar todas as meninas da aldeia, suas mães que ela tinha uma história para contar e teria que ser naquela hora.

Um dos meninos subiu em um pé de jatobá e por ser leve foi o mais alto e tocou um apito de madeira significando convocação, só via lá de cima as mulheres saindo em direção a Oca Grande, Pajés e Caciques, jogadores, pescadores também se interessaram na conversa e ficaram ao lado da Oca Grande Omo se fossem guardiões, mas o interesse

era saber o que se tratava aquele chamado.

Marayny falou se seus sonhos e que havia falado com algumas meninas em relação a Via Láctea era simplesmente um sonho, e que aquele lugar imaginado não existia e isso for descoberto por ela em uma mercearia em São Félix do Araguaia lugar conhecido como secos e molhados, e que conheceu uma coisa falante e que aparecem gente, uma tal televisão e que o pior estaria por vir.

Todos de orelhas atentas as falas, ela revelou que na televisão teve um moço de roupa engomada e da mesma cor(terno) falava com Anauerê nossa parente e prima minha, sobre os motivos que ela estava vivendo na cidade e isso lhe assustava muito, mas a nossa parente não deixou de falar de nosso povo, dos motivos que fizeram seus pais a acreditar numa vida melhor para sua filha, da promessa de um fotógrafo que a levou, das falas de ter sido explorada na casa de família, da preocupação dela com todos nós mulheres indígenas

Descreveu o que sua prima revelou sobre a cidade, que dormia na rua, lugar de chão preto, muita poeira,, muita gente atordoado, alertou assim Marayny que a aldeia deveria estar mais fechada a esses senhores pois eles seqüestram os “índios” e as “índias” e lá nesses lugares os tratam mal, como seres inferiores, mostrava que entendeu o recado dado na entrevista por sua prima e ainda que aprendera a interpretar os sonhos e casar os mesmo com a realidade.

As mulheres e os homens ali presentes em grande número resolveram receber essa informação de Marayny como um alerta e como um chamado a organizar e buscar de volta sua parente abandonada no bairro do Tatuapé em São Paulo.

Decidiram descobrir onde estava Anauerê e ir buscar ela e se ela quisesse retornaria a Aldeia Santa Isabel do Morro, Marayny juntou recursos, conversou com o Serviço de Proteção ao Índio naquele local e junto a seu pai Atoweá, foram a capital paulista, mas a

indicação de residência não era mais o Tatuapé e sim passou a morar mais para a área central de São Paulo, bem próximo a estação de onde está o Metrô da Rodoviária do Tietê.

Ao chegar naquele local enfumaçado, cheio de árvores empoeiradas, com prédios gigantes, pareciam que iam cair em suas cabeças,, muitos carros, ônibus, barulho de sirenes das polícias e das ambulâncias, Marayny teve muitas vertigens, tonturas, assim como aconteceu com um amigo meu o Edmundo Omore Xavante, uma vez que foi visitar Ouro Preto nas Minas Gerais e ficou perplexo com aquele tanto de casa pendurada no morro, de inicio pediu ao motorista para deixar ele ali mesmo pois não seguiria a Mariana por ter sido alertado por seus ancestrais e decidiu voltar para Belo Horizonte.

Marayny, pode verificar o ambiente, as condições que sua prima vivia, num local íngreme e com esgoto a céu aberto, sem rio, com árvores secas e distantes uma da outra, quando ainda existiam, parecia muito com o inverso imaginário da Via Láctea.

As duas conversaram muito, tomando um café com cuscuz de flocão de milho, Marayny falava na língua Karajá do tronco Macro Jê para verificar até onde Anauerê preservara sua cultura, ficou feliz pois a prima estava falando fluente sua língua materna apesar de alguns tropeços, normal para quem ficara muito tempo ausente de algum para conversar nessa sua língua e que corre o risco de se perder se não forem repassadas a crianças, jovens, pois muitos anciãos já haviam ido para a Via Láctea.em Karajá, em português, faziam muitos gestos que aprenderam na infância

Mesmo misturando o português que já era falado pelas duas indígenas, elas conversaram e chegaram a uma conclusão, Anauerê não aceitou a retornar para a aldeia, mas decidiram pelo menos pedir aos anciãos, ao Cacique e às Pajés a benção e que elas fossem conduzidas ao posto de lideranças do Povo Karajá, seja na aldeia ou mesmo na cidade, firmando as duas e com a permissão do pai de Marayny, Atoweá e assim ao retornar aliviada e longe daquele lugar de barulho terrível.

Marayny estava super contente pelo papo com a prima, descobriu uma série de ocorrências tudo de perto e coisas que ela não sabia, por exemplo, que parte dos seus parentes que sonhava sempre que estavam na Via Láctea, foram chacinados pelos Torí, e por grupos indígenas tidos como rivais, mas na realidade eram cooptados e que muitas famílias que estavam sob risco de violência bruta migraram para outros locais como Belém, Leopoldina de Goiás, Belo Horizonte, Goiânia, Brasília, até em Manaus já chegavam indígenas Carajá/Karajá.

Muitos desses por questão de sobrevivência usavam a estratégia de negação étnica para terem sossego e não perderem suas vidas uma vez que o processo de colonização, catequização e genocídio estava em alta e muitos parentes morreram por força de aparatos de Bandeirantes, polícias e ou mesmo grupo rivais que eram incentivados pelos latifundiários que em nome da Lei de Terras usurpavam o local sagrado de moradia dos indígenas.

Destas descobertas, cada uma em sua localidade passou-se a condição de lideranças deste povo, passaram a associar as forças junto aos Pajés e as Pajés, aos anciãos e anciãs, as crianças e jovens e os Karajá passaram a romper com as dificuldades.

Um dos problemas graves detectados era o quantitativo de parentes adoentados, era preciso utiliza as ervas, caules, folhas, tubérculos, cascas das rica botânica, mas precisava haver uma atenção às doenças graves e as epidemias, romper com a visão romântica de que tudo se resumia a facilidade, a beleza da Ilha, pois a abundância estava dando lugar a escassez, tanto na caça, na pesca e na agricultura própria.

Precisavam urgente de uma nova estrutura de saúde que desse conta de responder com cura e cuidado imediato uma vez que pelas contas de Marayny mais da metade da aldeia já havia ido para a Via Láctea e tinha que dar um basta nessa situação.

Outro problema não menos importante era a infestação de grupos neo-pentecostais na aldeia. colocando medo nos indígenas, condenando seus costumes, suas celebrações próprias,sua cultura, seus rituais, suas músicas e danças, suas indumentárias seus grafismo e sua arte na cerâmica, esses missionários diziam que era pecado e que Deus iria punir com mortes e mais doenças. Diziam que a forma com que eles chamavam Deus como Tupã estava errado, a forma que cultuam não era espiritualidade e sim blasfêmia, que quem age assim com Deus era arruaceiro, pecador e que precisaria de salvação Divina e que somente eles conseguiriam fazer isso acontecer.

Muitos caíram nesse conto e a desavença que reinava, o canto da sereia estava impregnado naqueles jovens e adultos, mas Marayny chamou imediatamente suas forças e as forças da natureza em especial as estrelas, as constelações, a mãe lua (Jacy), que sempre as iluminaram naquela localidade em que o clarão dos céus é que iluminava a

aldeia para que os mesmos pudessem em volta de uma fogueira dançar e cantar agradecendo as obras de Tupã, e se juntando as estrelas propiciaram mas energia aquele povo que estava necessitado, e os Pirilampos, Vaga Lumes fortaleceram esses momentos de luz, também reforçados pela Via Láctea que não era uma mera imaginação. Passaram a viver em noites de luar brilhante na luz pálida das estrelas.

O Poder das estrelas contaminava aqueles corações envoltos a fogueira com galhos secos de angico, pitanga e canela, a fumaça já era um jeito de aspirar coisas boas para os pulmões e ainda nessas ocasiões que se percebia o quanto esse brilhante se parecia com luzes de cristais ou esmeraldas, os Karajá sempre apreciaram a cadeia estelar no Hemisfério Sul em determinados momentos do ano.

Eles contemplavam o horizonte norte e ao sul, viram quando brilhou em sua beleza mística a constelação do Cruzeiro do Sul. Órion estava no Zênite enquanto as Plêiades subiam em direção ao leste, e mergulhava bem devagar rumo ao oeste, muitas estrelas com luz líquida formavam fachos de luz enfileirados, Vênus, virada acima da Sirius e desenhavam ambas, um brilhante no céu. Nessa contemplação de tantas maravilhas não esqueceram um segundo que quem fez tudo isso foi Tupã, o Grande Espírito e nosso Criador e de todos os seres vivos humanos e inumanos

A sua dança era ritmada como letras de uma oração que às vezes eram bem silenciosas mas com firme intenção de agradecimento a imensidão daquela ilha que lhes proporcionava farta cadeia alimentar, de adoração e louvor ao grande espírito, e a provação de que ali também tinha a Eternidade, e ligação com outros seres, esses são maiores que um universo de starn que é um complexo de estrelas, pois, os seres aqui já estiveram vivendo e se multiplicam em todos nós.

Assim as religiões neopentecostais apossaram de pare da aldeia, catequizando, colocando medo nos indígenas, condenando seus rituais, sua forma de cultuar a espiritualidade que lhe é inerente, acusando este ou aquele de blasfêmia, de arruaceiros, pecadores, e que precisariam de salvação Divina, chegando a expressar que o Tupã tão falado não existia, e vários caíram nesse canto da Sereia, vários foram contaminados num amplo sentido da palavra.

A líder Marayny, de imediato chamou as forças da natureza em especial das estrelas, das constelações as quais sempre fitava naquela escuridão peculiar onde apenas o clarão do céu é que iluminava com auxílio de pirilampos, vagalumes e às vezes na mudança de localização de algumas estrelas, que pareciam rabo de cometas.

Foi lhe revelado que a saída para os problemas que foram levantados deveriam serem consultados aos encantados que não estavam ali naquele plano e nem apareciam para todas as pessoas, mas que tinha uma intimidade com tosos, eram seus protetores e abria caminhos na mata, nos rios, para que alertasse sobre quaisquer risco ou perigos a frente e assim poderiam desvencilhar de todos os males, se é que mal ou bem não era importante para eles.

Essa cosmologia Karajá é duradoura e Órion já apontara também que do ponto de vista das religiões não se deve ser intolerante, mas muito vigilante na linha do “Vigiai e sempre orai” para não deixar surgir novas guerras de ego, já chega os mortos por chacina em 1.929.

A conceituação étnica e de respeito é que indígena não tem religião, conhece a Deus por meio da natureza, de Pachamama, dos seres vivos, das rochas, das raízes, caule, folhas, galhos, das plantas e de suas cascas,dos diferentes animais, insetos e por isso permanecer na proteção extirpa o processo de apagamento que os Torí propiciam ao nosso povo. Essa é a essência da natureza a qual não pode ficar apenas sob responsabilidade de indígenas preservarem.

Marayny e Anauerê formaram grupos de parentes para pensar formas de superar os obstáculos, tornar seus iguais como protagonistas das lutas, principalmente no que se relaciona a sua arte e a sua cultura, e cada qual passara a conduzir suas histórias, elaborar as pautas comuns que atenderia individual e coletivamente seu povo, com muita democracia, ancestralidade, espiritualidade, festejos culturais, históricos e que elevaria ainda mais os Carajá como um povo de Contextos Urbanos e rural considerando suas aldeias em boa pare do Brasil.

Anauerê permaneceu na cidade, se inscreveu em uma Rede de Articulação de Indígenas em Contextos Urbanos e Migrantes, buscou toda forma de respeito a seu povo, questionou órgãos indígenas que nada faziam pelos indígenas na cidade, principalmente em relação a saúde, Ela deu passos amplos na sua liderança, sendo acolhida na Organização das Nações Unidas quando na oportunidade denunciou o abandono e a perseguição não somente de seus representados mas, vários grupos étnicos que viviam em inúmeras cidades nas cinco regiões do Brasil.

Já Marayny que rompeu com muitos estereótipos, com o machismo preponderante, pelo reconhecimento dos indígenas Karajá/Carajá foi ascendida a posição de PAJÉ de sua aldeia e muito referenciada e procurada pelos Avá canoeiros, pelos Tapirapé, pelos Xambioá, pelos povos ribeirinhos, por sua capacidade e entender as pessoas, de curar de alguns males, de articular com a medicina oficial do Sistema Único de Saúde, passou a ofertar ações e práticas integrativas e complementares baseada no conhecimento indígena, além de ajudar outros povos na luta pela demarcação de suas terras e territórios, contra a devastação das florestas e contra a mineração desenfreada e o garimpo irregular que tem causado mortes a indígenas nos vários cantos do país.

Dessa forma passaram a valorizar mais a agricultura familiar, produzir para o consumo próprio e para as escolas públicas, nesse reconhecimento mundial, passou a escrever textos em Karajá, em português, Inglês e Espanhol, passou a ser um elo de denuncias para além da Ilha do Bananal, não perdeu de encontrar com sua prima Anauerê nas Marchas de Mulheres Indígenas e nos Acampamento Terra Livre, onde participavam com um olhar bastante crítico e analítico em relação ao separatismo de indígenas de aldeias e de contextos urbanos, alimentado por uma estrutura que tinha financiamento internacional calcados em pessoas que adoravam ver p circo por aqui pegando fogo.

Com essas práticas das lideranças que ultrapassavam as duas primas, até a questão religiosa foi dando lugar, os pastores vendo seus negócios perderem rendimento, foram embora, suas edificações deram lugar a reconstrução de grandes Ocas como referência culturais e estética para a aldeia, tiveram a colaboração de estudantes indígenas da Universidades Federais de Goiás e a do Tocantins, assim redesenharam a nova aldeia, para que os indígenas estivessem vivendo o tão anunciado Bem Viver e isso também poderia ser considerado uma presença na via láctea..

Já nas cidades a situação não ficou diferente, a abertura política, a aceitação de que ali tinham indígenas, o financiamento de projetos de lei de incentivo à cultura, as cotas para acesso de indígenas ao ensino técnico e superior, a participação dos indígenas e Conselhos de Políticas Públicas, nos Conselhos Profissionais, nos Grêmios Estudantil e até a formação de alguns para disputar cadeiras parlamentares ou executivas foram significativas, assim o elo campo e cidade estava estabelecido. A tinta acabou e qualquer semelhança não será mera coincidência.
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domingo, 6 de fevereiro de 2022

O recém nascido (conto) * Antonio Francisco Pereira / MG

 O RECÉM-NASCIDO

     Olá, bom dia!

     Eu nasci hoje, primeiro de janeiro, e espero ser bem recebido por todos.

     Ainda estou meio titubeante, sentindo os primeiros contatos e interpretando as primeiras sensações, mas já deu para perceber o clima festivo em torno de mim e fico feliz com isso. Até fogos eu ouvi.

     Agora sou o caçula de uma numerosa família mas, infelizmente, terei vida curta, como aconteceu com meus irmãos. Por isso, espero aproveitar bastante as boas coisas deste mundo, dar e receber só as melhores notícias, como o fim dessa pandemia que assolou a humanidade, levou muita gente querida, mas agora, com a vacinação, vem perdendo forças e fazendo menos vítimas. Ainda bem! 

     Mas estou um pouco apreensivo com outro acontecimento que certamente vou presenciar: as próximas eleições. Não sou tão inocente a ponto de desconhecer que os políticos brasileiros não estão mais no jardim de infância. Estão, sim, num ringue de luta livre, muitas vezes desferindo golpes baixos. Isso não é nada bom. Além do mau exemplo para os recém-nascidos, podem machucar também a plateia, ou seja, os eleitores.

     De qualquer forma, mesmo sem carnaval, eu estou otimista. Afinal, aqui no Brasil – gigante pela própria natureza -, eu nasci em berço esplêndido, onde a imagem do Cruzeiro resplandece.

     E há de resplandecer até 31 de dezembro, para que eu me despeça feliz e realizado.

     Por isso, eu confio em todos vocês. Assim, por favor, não me decepcionem.

     Meu nome é muito fácil de guardar. Meu nome é um número. 2022. Ano 2022.

     Então ... FELIZ ANO NOVO PARA TODOS!

    

 Antônio Francisco Pereira / MG

terça-feira, 2 de março de 2021

O REINO * Eliezer Rogério Pereira da Rosa / SC

O REINO

 Eliezer Rogerio Pereira da Rosa/SC

 

Quando aquele povo gemia seu sofrimento, cantando suas dores em lamúrias babilônicas, em harmonias dissonantes com nostalgia de um tempo em que foram felizes...O povo clamou pela sensatez. Ao perguntarem ao ancião quem reinaria...ele declarou: - Penso que a sensatez deve prevalecer diante desse cenário. Devemos pensar e agir com lucidez sempre, sob pena de não reverter a situação ou até auxiliar a progressão do mal. Talvez não conseguiremos contentar a todos, mas é fato que faremos a nossa parte no que pudermos alcançar. E sempre é possível alcançar um pouco mais do que achamos estar ao nosso alcance, se pelo menos tentarmos. E eles acreditaram que o Homem sensato, prevê o mal e faz de tudo para evitar um confronto desnecessário. A sensatez quer reinar, mas nem sempre, a voz da sensatez está para ser ouvida em todos os cantos do reino. Há tantas cavernas e porões, há tanta escuridão onde pode haver ajuntamento da loucura mais temível, o brilho do outro, há tanta sede de poder pelo poder, e todo o mal cria raiz no coração dos homens...  

E o reino dos homens sensatos passou, e os bobos da corte, governaram. Em nome do riso, em nome da graça, uma desgraça para aliviar as dores. Contudo, todos palhaços muito sérios, iludidos e compenetrados, é claro. Desde então estava proibido rir dos seus feitos como acontecia num passado não muito distante. Pergunto-me se algumas vezes a sensatez não é apenas mais um truque dos palhaços disfarçados.. E foi assim que o povo teve medo quando eles tiraram suas máscaras. Do que estávamos reclamando? Nós pagamos o preço, contratamos o espetáculo por um alto custo, e é direito nosso assistir ao espetáculo das nossas ilusões. Reina agora no coração, a aflição. E que venha o choro, e o riso somente será permitido às escondidas, o riso será a resistência, no escuro, nos campos distantes, revolucionários da alma, mas com pouca reflexão. Mas se nós realmente compreendêssemos, não haveria razão para o riso, o caos se aproxima, leia as ruas...

Um sábio deixou seus aposentos, estava confinado há tanto tempo que sua barba branca chegava até o cinto. Ele saiu para anunciar um novo tempo. Alguém se lembrava dele, era jovem quando se retirou para sua clausura, agora as marcas do tempo escreviam poesias em sua pele. E ele havia transcrito em seu próprio corpo uma mensagem para todos transformar. Restava a dúvida se havia lido em um livro, ou eram suas próprias reflexões, e assim dizia, ou gritava seu próprio corpo: Tempos difíceis fazem homens fortes, homens fortes fazem tempos bons, tempos bons fazem homens fracos. E assim, clamaram por um Rei Forte. Os guardiões disseram: - Na atual situação, o mal nos alcançou e lamentamos, mas é melhor ser governado por soldados guerreiros. E por inteiro, o povo clamou o mantra poético de um sábio atemporal, que veio como um refúgio em meio ao vendaval.

E o reino dos palhaços passou, e os guerreiros governaram. Contudo soldados marcados, feridos e experimentados na batalha. Para surpresa de alguns, Sensíveis! Mas ao mesmo tempo, imponentes. E nós obedecíamos suas ordens, respondíamos bem aos seus comandos. Nos ensinaram o valor da disciplina, de uma vida regrada, os comandos de marchas tocadas ao som de trombetas e gritos de amor ao reino, conduziam nossas formaturas, bailes, festas e sintonizavam uma canção ao nosso coração tocando nossas vidas. Do amor à nossa crença, parecia um resgatar de um valor há muito perdido. Um soldado entrou num templo abandonado e encontrou nossa bandeira empoeirada, e os mais jovens se perguntavam, que símbolo era aquele. Os mais idosos choraram e festejaram, e o velho sábio voltou para seu confinamento, quem sabe pensando sobre a necessidade dos homens por símbolos. Mas os soldados se cansaram de conduzir o reino, haviam engordado. E as almas se fatigaram da ordem e disciplina, queriam liberdade...ir além das coleiras e fronteiras que julgavam opressoras. Democracia! gritou a multidão enfurecida, e um camponês tinha umas 5 espadas, o comerciante disse ter alguns escudos que pertenciam à sua família, alguém criou uma ordem secreta e a conversa ficou belicista. Não demorou para que um jovem que tinha estado aos pés de um sábio que fora banido do reino, gritou: Revolução! E o eco das ruas...devolveu, Revolução, Revolução, Revolução!E e alguns ainda pediram, que tenham coração...

E o reino dos soldados passou, e os livres pensadores governaram. Porque pensadores livres tinham a mente aberta, coisa rara de se encontrar em dias cinzas. Pensadores muito sensatos, e muitos ponderaram como eles, e seguiram seus passos, não tencionaram consequências, criaram uma lenda, derrubaram alguns templos, e com as pedras produziram um mito real, palpável, que os olhos podem ver as mãos podem tocar sem serem mortos. Conquistaram os mestres e os discípulos. Os pensadores alargaram as fronteiras do reino, conquistaram terras que os soldados nunca chegaram, enterraram velhos pensamentos e fizeram nascer no meio do povo a luta pela liberdade a qualquer custo, a ideologia era maior que a vida humana.  Mas qualquer custo, pode ser caro demais, pode ser tarde demais para voltar... Assim como o mal, o bem tem suas raízes no coração dos homens. Remanescentes sobrevivem, ainda que calados. Outros pensamentos começaram a brotar nas regiões montanhosas do reino. Os pensadores minimizaram -  Não há de ser nada, não nos preocupemos, são homens da montanha, seres desprezíveis, estão sempre elevando o pensamento, fazendo orações, cheios de misticismo, e não costumam descer ao reino. Um mal que trataremos em breve. Haviam pensamentos sobre a origem do reino, que se confrontavam entre os filósofos, sacerdotes e alquimistas. Quando se assentaram para chegar a uma conclusão, o reino se dividiu. O mal tem suas raízes. Foi quando iniciou a revolução, e as armas e ideias chegaram nas montanhas, e os montanheses que eram pacificadores, começaram a sentir dores. Dores de parto, a brisa deu lugar a ventos impetuosos, e eles ouviram a voz do vento. Corações se unificaram como um só homem, e um só homem estava pronto para descer e enfrentar os gigantes. E o sangue jorrou no reino quando o pensamento contrário estava proibido. Em nome da liberdade, esqueceram a fraternidade. Todos deveriam ser iguais, mas qualquer igualdade diferente do discurso não seria permitida. O poder estava centralizado, e a legitimidade do poder pelo império do saber, estava sendo questionado em cada vilarejo do reino...novos tempos estavam chegando...

 Homens da montanha não reinavam, eles queriam voltar para seus lares, quase puritanos, mas não insanos. E o reino dos livres pensadores passou, e os trabalhadores governaram.  Eles pintavam um novo mundo, consertaram o que fora quebrado pela guerra, levantaram as edificações do reino que haviam sido quebradas nos confrontos. Mais do que paredes, eles reconstruíram a segurança do reino. Não havia mais pontes, portas, nem qualquer esperança para as crianças. Cultivaram os sentimentos que faltavam, alimentaram todas as casas com sementes e forneceram comida, roupas e espadas. Espadas que nem foram necessárias, pois por um tempo a paz reinou. Até que um homem ocioso que vivia peregrinando nas terras prósperas herdadas pelos soldados, e se alimentava sempre do fruto do trabalho alheio, resolveu gritar em nome de um velho pensamento que ainda sondava o seu coração. Seria mais uma vez a raiz do mal? Não conhecíamos sua história mas ele proclamou que as pessoas eram exploradas, que não precisavam se sujeitar, dar seu sangue pelo reino sem serem reconhecidos. Que eles estavam construindo celas para o seu corpo e sua consciência, que as paredes, os muros seguros eram parte do domínio de suas liberdades. Então o Grito ecoou - Sejam livres! Disse o pensador ao trabalhador. E verdade ou mentira, ninguém gosta de ser enganado. Foi quando eles começaram a usar mais a espada do que suas ferramentas de trabalho. E quando a espada reina, reinam os fortes, os homens perdem sua humanidade na guerra. Ninguém se lembrou das histórias contadas sobre a guerra, tão pouco do choro de quem viveu. Não demorou muito para vir a fome, para que os homens perdessem o sentido, e o ódio fosse promovido. Logo, o reino estava dividido e vilarejos construíram prisões para seus irmãos. Os monstros humanos habitavam algumas florestas, e nem a inocência das crianças fora preservada.

 E o reino dos trabalhadores passou, muralhas ao chão, quem poderia governar com o coração? E os poetas governaram. Os poetas fomentaram revolução, conquistaram as cidades de pedras, fizeram chegar água em terra seca, deram sentido para as ideias dos pensadores, abriram as prisões e deram liberdade aos que haviam enterrado a esperança. Envolveram os soldados com palavras de coragem, fizeram ligar todas as estradas em nome do amor.  Pediram que os pintores dessem uma nova cara para o Reino, pintaram as pontes, os telhados, o templo, o palácio, e as portas da cidade, até os de tenra idade, agora escreviam cartas em nome da poesia. Os filósofos enviaram textos que escreveram junto com os sacerdotes, que foram inspirados nos relatos dos soldados e aprovados pelos trabalhadores. O poema convocava os homens sensatos e os pensadores a se juntarem no palácio para que em nome do Reino o Livro fosse escrito. Para isso um grande banquete foi realizado, e os que sempre serviam agora foram servidos, os que sempre eram servidos estavam limpando e cozinhando, e oferecendo conforto para quem chegava de longe para a festa. E mais que boa comida, saborearam palavras. E cada palavra trazia brilho nos olhos, alegria ao coração. Houve trégua, apertos de mãos, selado a união. Um pacto de sangue entre irmãos, para um livro sobre perdão, pois haviam muitas feridas abertas nos corações. O escrito selado por aliança dizia: Os poetas são todos motivadores de sonhos, nos fizeram recordar a esperança e sonhar com liberdade, mas sem esquecer a responsabilidade que um soldado apresentou. Os livres pensadores concordaram em ceder de suas verdades e os trabalhadores e soldados ajudaram a fazer mudanças em segurança. Os sacerdotes propuseram que os homens da montanha haviam se retirado também fossem convocados. E todos concordaram pois a montanha também era reino. Mas eles não desceram. Mandaram um recado pelo mensageiro, que apenas um homem iria descer. E ele chegou. Desceu a montanha e adentrou as ruas da cidade com seus pés feridos em espinhos, carregava um alforje e seu aspecto era de um peregrino com fome e sede, suas mãos calejadas, apoiado em seu cajado. Uma entrada nada triunfal mas na porta do palácio, as crianças o rodearam, ele se ajoelhou para receber um abraço. E foi aquele abraço que tirou todo o cansaço de sua jornada. No banquete, foi convidado a tomar lugar à mesa no lugar de honra, que há muito não era ocupado. Havia uma tentativa de gratidão, reconhecimento e um convite para um tipo de redenção. Ele se assentou e rejeitou comer qualquer coisa. Estava em silêncio, e ao ouvir sobre a inscrição do livro do reino, apenas consentiu com a cabeça. Um sacerdote se aproximou com o livro para que ele pudesse assinar, mas ele fitou os olhos do sacerdote. Parecia ter um universo no seu olhar, o sacerdote se afastou, o homem tomou o livro, mas não a pena e a tinta. Folheou as páginas atentamente e uma lágrima desceu em seu rosto. Que memórias? Teria ele se visto no Livro? Teria ele visto todas as dores, vitórias e glórias, derrotas, vidas perdidas e reinos desmoronados? O amor se perder em meio ao ódio? A inocência mergulhar na maldade? Bem próximo a ele estava um soldado e um trabalhador. Ele tirou de seu alforje um pedaço de pão e estendeu ao trabalhador. Estendeu a mão ao soldado e pediu sua espada. Todos estavam em silêncio e observavam com atenção. Ele tomou a espada e cortou a palma de sua mão. Com a outra mão colocou seu sangue na ponta do dedo e escreveu no livro. Após, fechou o livro e colocou na mesa do banquete. Pela primeira vez, estava sorrindo. Assim, ficava estabelecido que de agora em diante haveria mais harmonia e muita poesia. As pessoas acreditaram que o amor reinaria, e o amor, é a sensatez humana.  

Estava feito! Para cada dia havia uma poesia que dava uma direção para cada um de uma forma muito singular. O Reino prosperou, o mal recuou, o amor fluiu e o povo se alegrou. Quando a poesia preparou o reino da sensatez no reino dos homens.

            A poesia por si só não reinaria absoluta sem a sensatez. A altivez dos homens seria abatida. Eles compreenderam que a melhor arma contra a ignorância filosófica e a insensibilidade sacerdotisa das camadas religiosas, a loucura da sabedoria, precisa ser controlada pela poesia. Agora, um coração poetisa  sensível ao povo e suas necessidades, mergulhando com maestria aos anseios e desejos mais profundos da alma humana.


AUTOR:  Eliezer Rogerio Pereira da Rosa - Jaraguá do Sul - SC
erogerio.p17@gmail.com

segunda-feira, 16 de março de 2020

Cotidiano - Conto * Ronilson Lopes - AM

Cotidiano 
Ronilson Lopes 

Sacolão. Tomate, chuchu, batata, alface, cebola, pimenta. Toda semana. Desde o início deste ano corrente. 

Rotina? 

De fato! É o mesmo caminho. Geralmente as mesmas frutas e verduras são compradas. No entanto, nunca é rotina. 

Por quê? 

Moro na rua Getúlio Vargas número 46. Para chegar ao Sacolão desço duas quadras da mesma e dobro a esquina na Madre Gertrudes, e logo no primeiro quarteirão está o Sacolão Mineiro, no qual com uma hora e meia eu termino de escolher tudo que tenho a comprar e retorno para casa. 

Pronto. 

Dito assim tudo é rotina. Porém não é, pela seguinte constatação: cada vez que vou não sou o mesmo, mas sempre um ser diverso do que era antes. São manifestações, experiências que constato do seguinte modo: 

Às vezes estou triste. Vou melancólico, quase não olha para os lados, para as pessoas. Mesmo assim para na sorveteria que tem a poucos números de meu compromisso. Enquanto saboreio duas bolas de milho verde e chocolate branco com creme de morango, penso a respeito da vida. 

Outras vezes vou a uma das várias bancas de revistas que há ao lado, ver o número da coleção de CDs “Raízes da Música Popular Brasileira”, da Folha de São Paulo. Animadíssimo, adoro samba. 

Fecho um olho, para ao invés de olhar os CDs, não olhar as revistas da Playboy. Pecado! 

Por vezes vou à papelaria comprar cartões. 

Noutras apenas observo as pessoas. Mendigos cantando lixo, ricaços com seus carrões, os bêbados nos botecos e as putas. Assim eu escolho maçãs e peras no Sacolão. 



Extraído do livro - Em contos: calpistas na criação. Helena Contaldo Martins (Org). Belo Horizonte: O Lutador, 2011.

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